segunda-feira, 31 de julho de 2023

Avós

Amores da Aldeia, Avós Maternos
Francisca Júlia e José Joaquim conheceram-se e amaram-se. Casaram assim que puderam, sempre em conformidade com os desígnios dos aldeões. Não viveram felizes para sempre. Tiveram muitos filhos. Muita fome, pouca esperança em melhorias. Ervas aromáticas: quanto baste. Pão, linguiças, azeite e alhos: parcos. Carne, peixe e legumes: parquíssimos. Restantes itens da roda de alimentos: inexistentes. Francisca Júlia lavava quilos de roupa na ribeira, fazia a comida e arranjava a casa. José Joaquim trabalhava na monda e finda a jorna embebedava-se. Todas as noites. Os filhos cresceram debaixo de temor, José Joaquim tinha mau vinho, porrada nos cornos todos os dias, numa ânsia egoísta. Esposa inclusa no descarrego das suas básicas frustrações. Chegados à idade adulta, os filhos casaram, geraram netos que fizeram algumas delícias a estes avós incultos e brutos que nem cerros. Poucas delícias, que não eram pessoas com jeito para essas coisas, portanto. A vida passou-lhes por cima. Francisca Júlia e José Joaquim: míseros e infelizes, é o que eram. Triste ilação... A morte chegou. Bem-vinda, talvez. Fim.
7 Janeiro 2012, 👀

Amores da Aldeia, Avós Paternos
Mariana Aurélio e Francisco João conheceram-se e juntaram os trapinhos como mandava a lei. A vida em conjunto foi curta e feliz quanto baste. Tiveram alguns filhos mas nem todos ficaram para semente. Noutro tempo era assim, não havia meios para combater algumas doenças, morria muita criança. Uma das meninas, moribunda, contava Mariana Aurélio, não se calou até soltar o último suspiro. Diz que não via: 'ó mãe eu já não vejo, ai mãe que eu já não vejo!' Ainda assim, a vida correu-lhes menos mal. Ou menos bem, depende do ponto de vista. A fome existia, as necessidades básicas não eram totalmente supridas. Um dia, Francisco João, ainda jovem, espetou um prego no pé. Apanhou tétano, a temível doença que ceifava as gentes nos anos 30 do século passado. Não escapou, morreu. Trinta e tal anos... Trinta e quatro anos, a Mariana Aurélio. Depois foi o luto, Mariana Aurélio nunca mais largou o negrume na sua indumentária até lhe terminarem os dias. Os filhos famintos, a casa paupérrima, o desgosto. A falta de trabalho para uma ainda jovem viúva, noutro tempo era assim... Filhos criados, casados e despachados. Netos, bisnetos. Afazeres e família. Companhia, enfim. Mas Mariana Aurélia tornou-se ruim, invejosa, intempestiva. A viuvez era um cargo que não abandonaria jamais, noutro tempo era assim... Depois de meia vida de solidão matrimonial, de castigo e ruindades de várias espécies, bem como dalgumas coisas boas, Mariana Aurélio morreu no táxi que a levava ao hospital. Tinha os dedos negros e encarquilhados por causa da aflição. Ao tempo que o coração andava fraco... Fim.
12 Janeiro 2012, 👀
Os textos acima escrevi-os há onze anos e qualquer coisa e quis transportá-los para este blogue porque no outro dia foi dia dos avós e lembrei-me que os havia escrito. São ainda actuais, digo: na minha cabeça, pois que, sendo hoje esse escrever, não duvido que poria o mesmo sentido triste porque sempre foi tristeza, principalmente, o que retirei das histórias que ouvia acerca dos meus avós. A foto copiei-a do mesmo lugar, o que fiz hoje foi alindá-la com um filtro do meu amicíssimo editor de fotos apelidado de LunaPic.

Sem comentários:

Enviar um comentário