sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

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Nota prévia:
Identifico-me com cada frase deste trecho, excepto o que aparece em itálico. Sério, parece mesmo a Gina e as pessoas a quem oferece bolos. A vizinha Gislena até me disse, nesta última vez, que preferiria que eu lhe vendesse uma fatia de bolo, ao invés de me pôr a oferecer-lha, que as coisas custam dinheiro e dão trabalho. Eu percebo a questão dela, é uma pessoa conscienciosa, não quer abusar e mais não sei o quê. Mas eu cá o que gosto mesmo é de dar fatias dos bolos que faço porque vejo que as pessoas comem com gosto. E fui eu que fiz.



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- Quer uma fatia de bolo?
- Acho que devia ir-me embora.
Eu não queria parecer desesperada, mas de facto estava.
- Fui eu que fiz – insisti.
- Um bolo caseiro? - Pensei ter visto um relâmpago de interesse na voz dela. - Não vejo que uma fatia me possa fazer mal.
Tirei dois pratos do armário. Ouvi o som da televisão subir na sala ao lado e fiquei agradecida pela privacidade que nos proporcionava. (…)
Sentei-me e entreguei-lhe um garfo. (…)
Quando provou o primeiro bocado, mudou completamente de expressão. Ao princípio, pareceu surpreendida, como se não tivesse bem a certeza de que era bolo o que estava a comer. Cortou outro bocado e depois pôs o garfo no ar e olhou para ele por instantes antes de o meter na boca. Mastigou devagarinho, como uma cientista ocupada com uma experiência importante. Depois, baixou o nariz e cheirou o bolo.
- Isto é batata-doce – disse ela. (…)
- Batata-doce, passas e... rum?
Acenei com a cabeça afirmativamente.
- Este bolo é uma maravilha – disse ela, dando outra dentada.
Na minha família, a tendência era manifestarem-se contra os bolos. Desejavam que eles não existissem, mesmo que estivessem a saber-lhes bem. Mas Florence Allen teve uma reação que eu raramente vira: rendera-se ao bolo.
- Fico satisfeita por gostar.
- Não é só gostar. Acho que isto é... - Mas não concluiu. Em vez disso, parou e deu outra dentada.
Podia ficar a vê-la comer o bolo inteiro, garfada após garfada, mas ninguém gosta de ser observado. Comecei a comer a minha fatia.
Florence pressionou o garfo contra o prato várias vezes até apanhar a última migalha. O prato ficou suficientemente limpo para poder voltar directamente para o armário.
- Quer outra fatia?
Cruzou os dedos compridos sobre o estômago e abanou a cabeça.
- Não quero estragar tudo por ter comido demais.
- Então leve para casa. - Levantei-me e retirei do armário uma embalagem de pratos de papel. (…)
- Não pode dar-me o seu bolo. A sua família pode querer. O que é que iam pensar se eu lhes levasse o bolo?
- Iam pensar que estava a fazer-lhes um grande favor – disse eu. Cobri o bolo com película aderente e forcei-a a pegar nele. - Muito obrigada pela ajuda que me deu com o meu pai.
- Eu não devia levar o seu bolo mas quero levar. As minhas filhas e o meu marido nem vão acreditar. - Levantou-o nas palmas das mãos e olhou para ele.
Sorri. Pensei dizer-lhe que teria todo o prazer em fazer-lhe um bolo todos os dias até ao fim da minha vida se ela estivesse disposta a ajudar-me a tratar do meu pai ou apenas expressar interesse pelo que eu estava a fazer, mas depois pensei que não havia necessidade de lho dizer. Podia assustá-la e fazê-la fugir.
Despedimo-nos, e Florence Allen partiu com o bolo.

'Comam Bolos!', Jeanne Ray, capítulo quatro.

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