Bom dia. São dez e quarenta e dois.
Hoje é dia para escrever o mundo inteiro sem me importar por não vir a consegui-lo, estou triste o suficiente para encher o ecrã com trinta centímetros de texto e está a parecer-me melhor a opção de escrever do que a de não, mesmo que minudências, o que obviamente não diferirá do meu costume, pronto, é que às vezes o ideal é deixar a triste e a deprimida e a suicida ganharem corpo, afinal a experiência tem-me mostrado que há uma hora específica num dia escolhido em que bato no fundo, a partir daí só vai dar para subir. A menos que.
Ontem ouvi na Radio que era dia das listas. Listas disto e daquilo, sendo a mais vulgar a do supermercado. É a única que faço, não sou organizada listicamente. Há pouco já desfiz a lista de supermercado anterior e rabisquei a lista atual, que por ora contém somente:
raiz d'aipo
cenouras
curgetes
frutos vermelhos
nachos.
Os tais nachos ainda não vieram parar à despensa e à mesa que me pertencem.
Às vezes dá-me vontade de ser muito organizadinha e fazer listas de tudo, como por exemplo de locais a visitar. Um dia comecei a fazer uma dessas mas logo esmoreceu a vontade, uma vez que não vou lá na mesma, quer tenha feito o lembrete ou então não, não é a existência duma lista que me leva a lugares incomuns. Depois os papeis onde apontara foram para o lixo, por tão inúteis serem, afinal.
Faço também listas, agora me lembro, de assuntos para escrever - ...no:blogue... - e assuntos para falar - ...no:canal... - assim mais tipo lembrete, vá, acabando por expor o mesmo assunto por meios diferentes. Numas vezes escrevi algumas frases que na altura considerei fantásticas e depois, enquanto discursava, as frases surgiram, aproveitando-as para o discurso, noutras vezes falei frases tão espontaneamente como é costume, o que me levou a lembrá-las e usá-las no texto.
Isto está a fazer-me lembrar dum vídeo que vi há dias onde uma youtuber manifestava o seu desagrado para com um livro recentemente editado duma – também – youtuber, isto por esta ter ido buscar grande parte do livro ao conteúdo dos próprios vídeos, acabando por fazer uma republicação. Na sua opinião, quem subscrevera o canal não teria qualquer interesse no livro, seria um repetir de experiência sem nada a ganhar. Concordo e não concordo com esta opinião, afinal de contas sempre haverá pessoas para tudo – quase posso dizer para todas as ocasiões –
pessoas para ler, e portanto rever com prazer a youtuber, ou seja: para marimbar se estão a (re)ver a youtuber
pessoas sem tempo de ver vídeos, ou então que não gostam de os ver, mas sabem que a youtuber existe agora em forma literária e têm disponibilidade - ou então vontade - de ler
pessoas que gostam muito de lançamentos de livros e passarem a conhecer a youtuber
pessoas, pessoas, pessoas.
A diversidade humana é de tal modo incontável que sempre haverá pessoas para. Serem poucas é que remete o caso para o esmorecimento, e isso eu entendo bem, ou então para a inviabilidade de negócio, o que também entendo bem, sei que a literatura, se esmiuçada, quantas vezes não passa dum negócio.
Ainda não acertei o relógio do estaminé, diz que são dez para a uma mas não são, são dez para o meio-dia.
Comecei a conversa da youtuber para dizer que quando tomo consciência das repetições que faço, me sinto esquisita, quem sabe haja pessoas - lá está a presença e a diversidade humana - que leem o blogue e veem os vídeos e considerem assistir a mais-do-mesmo. Muito embora o contrário possa também acontecer. Quantas vezes me acontece repetir leituras e/ou visionamentos? Muitas.
Hoje não faço vídeos, estou demasiado atulhada de letras e de tristeza para isso, vai a primazia para o abecedário numa ânsia de abafar a tristeza. Mas vou levar a máquina fotográfica montes de espectacular comigo para filmar a árvore amarela, agora que douraram as folhas e as mesmas têm caído aos montes durante este mês. Resolvi aqui há dias captar o despir da árvore, tipo:
hoje tem seiscentas folhas,
quatro dias depois tem quinhentas e nove,
dois dias depois tem quatrocentas e... quê, vinte e seis?
Será uma estimativa, claro está, não que não me ponha de nariz no ar vezes sem conta ao longo do ano - ao longo dos seis anos que isto dura, quero eu dizer - mas nunca lhe contei as folhas em dias diferentes senão quando tem para aí umas vinte ou assim.
Hoje é a noite das bruxas. Por algum motivo - possivelmente porque todos temos acesso a tudo via internet, então os costumes deste ou daquele país se disseminaram e se globalizaram e em tudo encontramos normalidade - agora a gente o que faz é viver o halloween. Aqui na rua há uma caveira com uma cabeleira cor-de-laranja pendurada numa janela dum rés-do-chão há semanas. Amanhã desenharei olhos e boca na abóbora-manteiga que tenho lá em casa. Ontem, no supermercado, vi pedaços de fita colante preta a fazer olhos e bocas em abóboras doutra espécie, aquela em que os gomos são visíveis e dá mesmo jeito cortar pelos sulcos.
Não tenho amigos. Não consigo fazer amigos. Não conseguem ser meus amigos. Esta questão atravessa-me e faz buracos e depois vem a tristeza preenchê-los. É principalmente por isso que hoje estou triste. Amanhã fico em casa porque não sei ter amigos, não consigo sentar-me num lugar e ficar ali e depois obviamente acontece que ninguém está para andar atrás de mim para se relacionar comigo. Acresce a isto os meus passatempos serem do género solitário. Acresce a minha personalidade, nem quando criança ou adolescente tinha muitos amigos, quanto mais. Acresce ainda que não há em mim apetência para debater assuntos e pontos de vista, entendo os debates como um aniquilar de opiniões, não me serve, mais: aborrece-me, e aborrece-me porque todas as partes têm razão, e sempre, todos os argumentos são válidos, e sempre. Vou falar de quê? De nada, escolho escrever. Mas preciso desesperadamente, não de me relacionar com pessoas, que isso faço eu todo dia ao balcão do lugar soturno, mas de não temer as relações fora deste pesadelo.
Boa tarde. São quinze e quarenta.
Se as sombras nos bancos da rua mais bonita de Lisboa já eram longas a semana passada, imagine-se esta, que a hora mudou para de inverno e portanto para mais tarde. Isto faz confusão à cabeça, afinal o relógio atrasou e a gente vive uma hora depois. É esta questão patética e, se vista de chofre, desarrazoada, que requer assimilação para futura habituação para futura assimilação da habituação. Não, não me enganei, é assim que entendo a questão ao momento.
Acabei por levar a máquina fotográfica não tão espectacular assim para filmar a árvore amarela. Notei-lhe ainda menos folhas, fiz bem em começar hoje a novela amarela.
Sei que isto de me apegar a coisas, tanto objetos como árvores ou plantas ou mesmo ruas, é sintoma de solidão. Se há pensamento que tenho, ou dúvida, é se fui eu que me transformei nisto ou a vida é que me proporcionou as circunstâncias atuais. Diz-se que a gente é que manda na cabeça, portanto se estou doente a culpa é minha. Tenho saudades da pedra da crua vermelha. Quem dera a loucura, este impasse é-me insuportável.
Amanhã vou tirar fotos ao meu dia. Ponho a máquina no disparo contínuo, que vai até às dezasseis fotos, e depois ponho tudo num filme com as imagens estáticas, em que o movimento será a mudança duma imagem para outra, tudo isto ao som de linda música, se bem que não haja movimento mediante a música, a música é inserida em separado no filme de imagens estáticas cujo movimento está na mudança duma para outra.
O que custa mais: perdoar ou pedir o perdão?
Eu saber a resposta, não sei, o que sei é que o perdoar contém um pedestal qualquer, mesmo que não sentido, ou tampouco desejado, e o pedido tem um certo quê de humilhação, já para não falar da retaguarda desprezível com que as histórias de perdão carregam o vil. Numa posição sou rainha, noutra serva. Numa posição sou louvável, noutra tenho que baixar os cornos. Isso sei. Sei ainda quanto custa vergar-me e também sei que não perdoo porra nenhuma. Suturo a ferida sem que a cicatriz algum dia apareça.
Já devia ter feito a marmelada, os marmelos já vêm de há umas duas semanas e o desejo de fazer a marmelada vem de há cinco dias e depois de há um. Não deu. Entretanto já um apodreceu, de todos quantos a vizinha Gislena apanhou lá no pomar e mos ofereceu com gosto. Ainda não os contei mas devem ser para aí uns dez. Amanhã devia arranjar um tempinho para os descascar e cozer e triturar e guardar.
A dona Madalena ofereceu-me marmelada. Vinha num pote de plástico fino e transparente com tampa que encaixa o bordo no bordo da caixa. É um daqueles recipientes bojudos onde habitualmente vêm acondicionadas as sopas do dia que se compram nos supermercados. Ela fizera a marmelada no dia anterior. Recomendou-me que eu a tirasse dali e a dispusesse num pratinho bonito, sempre faria melhor figura. Agradeci-lhe e ela repeliu o agradecimento, diz que não fora obrigada a coisa nenhuma, fizera por querer fazer.
Julgo que pelo desdém da dona Madalena se pode perceber que nem somente eu me não relaciono bem com os demais, há quem não aguente um agradecimento, mero e simplório, sim, de acordo com regras sociais, sim, todavia sincero.
Quando ela foi embora afundei o dedo na macieza da marmelada e vim de lá com um bom pedaço agarrado, que enfiei na boca. Estava, e está, muito boa, e eu tenho de fazer a minha o quanto antes.
O meu cabeleireiro é pessoa para me tratar dos cornos por dentro e por fora. Ou seja: por dentro moi-mos, por fora embeleza-mos. Ca porra. Ca qurido.
Há umas pessoas que me querem doutra maneira e ele é uma dessas pessoas, para ele eu tenho de estar sempre sorridente, sendo que não estou, e quando me esperam diferente, isso aborrece-me sobremodo porque jamais conseguirei corresponder. Ninguém corresponde às expetativas de ninguém, porra!
Já acertei o relógio do estaminé, cinco e quarenta e sete, quase noite agora, ao invés de não. O frio não tarda, muito embora esteja a tardar. O frio esmaga-me, pofe.
Vou ao Ginásio daqui a nada para esticar a chicha e dar conta da banha. Os riscos que a balança desceu saíram-me principalmente das mamas.
Boa noite. São vinte e três e quatro. Este post será publicado aquando do clique seguido do próximo ponto final.
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