Tenho tiques. Muitos. Mas aquele de assoprar pelo nariz como tem o senhor que acabou de sair do estaminé, esse tique não tenho eu. É assim como se estivesse a assoar-se mas sem mãos e sem lenço. Ou o dos mocados da cocaína. Esse mesmo, esse não tenho. As pessoas irritam-me e fascinam-me. É uma coisa incrível, esta. A escrita é um processo solitário e pergunto-me se não devia acabar com isto de escrever. Escrever transforma-me em algo não necessariamente bom e coloca-me num mundo à parte, estou sempre sozinha. A ideia é partilhar mas estou sempre sozinha. As pessoas irritam-me, vivo num mundo à parte delas e possuo um interesse desmesurado por tudo isso. Tenho uma vida cheia de coisas tão diferentes que me sinto um bocado embaraçada. A ideia é partilhar mas estou sempre sozinha porque as pessoas me irritam. É capaz de ser isso.
O senhor doutor passou uma parte da manhã a lixar as letras que dizem 'consultório' por cima da janela – e os números por cima da porta – e, numa outra parte da manhã, pintou estes dizeres de verde escuro.
O velho estaminé apresenta agora a porta e as grades num verde tão escuro como as letras do 'consultório' do senhor doutor. Lá dentro, quero eu dizer no velho estaminé, há dois espelhos com floreados em relevo e uma planta que me pareceu pender do tecto. Se pende ou então não, um dia alcançarei saber.
Agora a rua está muito mais bonita.
Agora a rua está muito mais bonita.
Logo ao início das consultas, bem que o senhor doutor me fez saber:
Quero que se sinta à vontade para me dizer o que quiser.
Só que a vez em que eu não esteja em consumições ainda não ocorreu. Ainda, repito.
Não tarda está ele a perguntar-me 'não se sente à vontade comigo, pois não?', e eu que sim. Que não. Não sei.
Idealizei sugerir-lhe que passaria a escrever um diário dos acontecimentos dolorosos, isso facilitaria a nossa vida. Depois percebi que faço um diário todos os dias. Depois percebi que não ponho lá nenhuma destas dores.
Vou partilhar uma história consigo, decidiu ele. Hoje, precisamente acerca deste acontecimento, penso que, muito mais do que a partilha, importou partilhar.
Uma Gina calma e assertiva disse coisas a alguém e, ainda por cima, espontaneamente.
Uma Gina abrutalhada disse coisas a alguém, espontaneamente também.
A segunda vence, isto contabilizando o tempo total que uma, ou outra, permanece no interior desta que escreve. Contudo, é certo que conheço de vista a primeira Gina.
Um dia deu-me um baque do caraças (sim, epifania é bem mais bonito, olarila, mas vai de baque), num repente recordei um programa de culinária onde o apresentador Nigel Slater aconselhava os espectadores a variar as compras no supermercado, que assim é que se varia a ementa caseira. Comparei esta ideia aos meus costumes do costume e pumba!, ó Gina, põe um CD a tocar, vá! E lá fui eu, de bem mandada que sou. Havia anos que não enfiava um CD na ranhura do aparelho de casa, tantos que neste ainda nem tinha calhado lá enfiar um, levei um ror de tempo a perceber como funcionava aquela porra, mas como queria levar a ideia até ao fim, persisti e venci. Foi tão bom. Sério.
E estava um antigo costume revivido.
Nesse mesmo dia tratei de reviver outro costume, o de me sentar no sofá a ver TV. Sim, não sou lá muito apreciadora desse costume, mas ainda assim, e até há coisa de quatro ou cinco meses atrás, punha-me a ver programas de culinária e entretanto, cá por coisas, deixou de me apetecer. Mas nesse dia dispus-me então a sentar-me no sofá, direitinha, frente à televisão, que encontrei sintonizada no Canal 2, e transmitia um bailado de que não guardei o nome, só sei que fiquei a ver interessadamente, e acrescento que bailados não é de todo a minha cena, portanto daí advém uma estranheza que notei logo na altura e, agora que escrevo, também a sinto. Mas continuei com o visionamento, e com prazer, muito embora não tenha visto tudo tudo tudo. Mas foi também muito bom. Sério.
E ficou um jovem costume revivido.
Estou no consultório. Logo que entrei cumprimentei o senhor doutor com um entusiasmado 'olá' e senti-me estranha por conta do tanto que foi. Ele recolheu-se para terminar de atender capazmente o paciente da hora e eu fiquei aqui, na sala de espera, a moderar este meu estado descontente. Será bem melhor mudar o registo, daqui a pouco estou ali, com a secretária desaparafusada pelo meio da gente os dois, acabrunhada devido ao meu desempenho vocabular.
Olha um elefante... Ah. Nesta sala há um elefante dourado com uma pessoa lá em cima, que é vermelha no corpo, ou na vestimenta, e dourada na cabeça. Tem um turbante, ou lá que é aquilo. Daqui não vejo bem mas deve ser isso.
Olha um elefante... Ah. Nesta sala há um elefante dourado com uma pessoa lá em cima, que é vermelha no corpo, ou na vestimenta, e dourada na cabeça. Tem um turbante, ou lá que é aquilo. Daqui não vejo bem mas deve ser isso.
Já caminho de cabeça levantada. Há pouco voltei a notar isso, é coisa que tenho vindo a reparar. É claro que nem sempre estou este poço de autoestima, mas. Lá dentro ouço a voz suave do senhor doutor, tem um sotaque incrivelmente bonito. Na verdade eu gosto dos sotaques todos, Norte a Sul e Ilhas, é tudo giro, não sou lá muito esquisita. A ver se lhes pára a conversa, que daqui a pouco não tenho folhas no caderno. Espaçada como é a minha caligrafia, é o que estou a prever. Parece que já estão a despedir-se. Vou parar.
Um dia desses aí, um domingo, encontrei-me sozinha da vida e decidi agarrar no carro e ir ao Ginásio. Foi o melhor que fiz. Para começar, após sair do primeiro túnel(zinho) que se encontra logo que se dê início ao IP7, avistei Lisboa numa perspectiva que não me é habitual. É Lisboa moderna, mas é Lisboa. Só não fiquei siderada com o tamanhão do que a vista alcançava porque me encontrava em movimento e, ainda por cima, em lugar de não se poder parar a marcha. Para continuar, o meu automóvel de matrícula portuguesa visitou a área do Ginásio, coisa que não fazia há um ano ou dois, à conta de, da frota familiar, a mota levar a melhor há esse tempo todo. Para terminar, dialoguei com ele:
Carrito, olha, tinhas saudades disto aqui?
Sim. (ele é básico)
Hum, há montes de tempo que cá não vinhas, né?
Sim. (ele é consistente)
Pisar este chão, ver este rio, inspirar este cheirinho, né?
Sim. (ele é, também, concorde)
Portanto: ó tu que estás só, não estejas isso, conversa com as coisas do teu quotidiano.
(Sem falar em nomes) O senhor doutor contou-me de uma paciente que encontrou um problema de saúde devido à toma repetida de um fármaco. (Sem falar em nomes) Percebi quem é a paciente e o teor do problema em questão. Isto porque uma cliente, que frequenta o mesmíssimo consultório que eu, me tinha contado uma experiência igual à que ouvi do senhor doutor. Podem as éticas profissionais, a dele e a minha, convergir? Ao que parece, podem, mas calei o bico.
Uma das cabines do elevador estava no meu andar mas mesmo antes de lhe abrir a porta alguém a chamou. Logo após eu clicar no botão outra vez, o vizinho do lado abriu a porta da sua casa na disposição de fazer o mesmo percurso descendente que eu. Cumprimentámo-nos e pusemo-nos à espera enquanto se ouvia, dois pisos acima, o toque de que chegara aí a cabine que havia estado no meu. Entrámos e descemos. A vizinha que tinha chamado a primeira cabine que aparece neste post acabara de sair, deixando-nos, por cortesia, a porta aberta. O vizinho do rés-do-chão, que não necessita de modo nenhum de elevador, isto por motivos que presumo que os leitores percebam como óbvios, usufruiu dessa cortesia antes de a gente os dois, pois havia fechado a porta de sua casa justamente no momento em que eu abria a do elevador, que dista mais da porta do prédio. Demos muitos bons-dias. Muitos e todos. O primeiro vizinho deste post chegou até a perguntar-me se eu estava pronta para mais uma corrida de cavalo, que é a mota. E eu que sim, ia lá perder a oportunidade de conversar longamente num elevador? Eu não.
Subir o último quarteirão da Alameda sem desacelerar o passo é do caraças. O senhor doutor vê a cura no cimo de uma escadaria, firmando a ideia de que jamais eu desça mais degraus do que os que subi da última vez. Eu vejo um caminho, sempre sinuoso, mas com desbastes aqui e ali. Que fui eu que desbastei, lá isso fui. Não vejo é o fim do caminho, o que pode significar que desacredito na cura.
Devia arranjar coragem para que na próxima consulta pudesse conseguir (olha só a construção da frase, confusa que está) pedir ao senhor doutor que não pusesse a música em som de fundo porque gosto mais de ouvir os sons, tanto os da rua como os do consultório. A parte social da vida é uma merda. A música entristece-me, a verdade é essa, mas não posso dizer isto a ninguém. Ou não convém, ou é desaconselhado, ou vou entristecer alguém com as minhas sinceridades despojadas de bom senso e completamente impreparadas. Oh ca porra. No blogue é igual, há sempre cuidados a ter para não ofender e/ou assustar, mesmo estando longe dessa intenção. É tal e qual como a vida no presencial e no social, há normas comportamentais, nunca se é inteiramente livre. É certo que para uns é de uma maneira e para outros de outra, mas não somos livres. Há também o esperável, o que para mim é do mais castrador que há. Estarem-me à espera paralisa-me todos os comandos, desde voz a movimentos.
Sonhei que o senhor doutor chamava chave à combinação de pontos onde espeta as agulhas de acupuntura. Não deixa de ser uma combinação de pontos-chave. Às vezes sonho cenas mesmo fixes.
O mundo está cheio de regras, e algumas são prescindíveis. Um dia, quando entrei no consultório, o senhor doutor cumprimentou-me assim:
Olá Gina!
Quais boas-tardes ou bons-dias, quais quê. E eu, como sou de olás, vá de olalá-lo de volta, prescindindo, portanto e também eu, dos costumes. Ah, e para quem não sabe, o meu nome é Gina. Prazer.
Sonhei que me tinha aparecido uma borbulha enorme na perna. Era uma rodela transparente, na verdade um lago, onde se via peixinhos pretos de barbatanas e bigodes brancos. É bem capaz de haver peixes assim, mas o que eu acho é que fui buscar o aspecto da minha cadela, a Olívia. Bom, andemos. Entretanto espremi a borbulha e os peixinhos foram à sua vida, mesmo que dentro de um espaço com oxigénio. Depois fui chegando a conclusões para aquela situação:
eu havia ido à praia;
um peixe entrara para dentro da minha barriga;
pusera ovos;
peixinhos haviam nascido (obviamente dentro da minha barriga)
A decisão seguinte era ir ao hospital. Foi então que o senhor doutor retirou um peixe enorme de dentro de mim - com as mesmas cores dos peixinhos que já se haviam instalado no esquecimento do sonho – e que se nos apresentou ratado e gelatinoso. Nojento, portanto.
Pronto, é sonho, que querem?
Os elogios não são para constar nos epitáfios nem nos quadros de honra, são para a gente os dizer no momento - ou um bocadinho depois, vá – em que alguém está a ser agradável.
Olha eu para o senhor doutor:
posso m'alevantar?
Olha o senhor doutor para mim:
pode levantar-se.
Há sempre pessoas no Banco. A senhora do Banco, a mais carismática, foi quem me atendeu. Tratou-me extremamente bem. É costume ela tratar-me bem, sim senhoras e senhores, mas extremamente é só para certas ocasiões e ainda não deslindei quais merecem este trato inflacionado (escolhi este verbo para rimar com Banco), só estou desconfiada de um motivo, o qual permanecerá secreto para vocês.
Entretanto aproveito para registar ainda que voltei a desesperar em filas de Banco e em consultas ao perfil do Instagram. Não é um agravamento, mas um regresso ao conhecido. Compreendam que o agravamento de um estado é uma questão pobre e tola, e um regresso é algo cheio de poesia, de saudade, de acolhimento.
Tenho vindo a perceber que o trato do senhor doutor para comigo imita o de alguém que conheço mais ou menos bem. Apesar de o tratamento aplicado ser diferente, as ordens são tal e qual, fofinhas assim, ó: ponha aqui o seu bracinho, feche a sua mãozinha, baixe a sua cabecinha.
Mas não haverá um profissional de saúde que em lhe apresentando os meus cinquenta anos de vida não se dedique imediatamente à perguntinha:
Então e menopausa...?
Ó pá, a sério, mas que merda vem a ser esta?! Por tanto ser assim, sinto-me até na obrigação de me perguntar:
Ó Gina, estás preparada para a menopausa?
E de me responder:
Não. Sinto é uma urgência (daquelas com ruído e aflição agonizantes) em me preparar para um não-sei-quê, que pode ser comparável, por exemplo, ao casamento ou à maternidade. A gente sabe lá o que vem aí, né? Pronto, é isso.
Gualter, esse filho de sua mãe, perguntou que tal anda o alinhamento.
Gina, essa filha de seu pai, respondeu que está-se a alinhar.
A marquesa está alinhada com os tacos, Gualter é que não sabe disto. Achei graça à exactidão, ao alinhamento conseguido sem esse propósito, e enalteci o pensamento até me sentir feliz. Aprendi há anos que fabricar um bem-estar pode nada ter de horroroso, mormente se mais nada houver a fazer, a crer, a ser. Finge-te, vá. É mau, mas.
Uma das perguntas medidoras (isto no sentido de ficar sabedor de como anda a minha figurinha psicológica, e é de notar que não em cunes) que o senhor doutor me costuma fazer é:
Então, tem conduzido?
Ó senhor doutor, então não tenho? Continuo a percorrer aquele caminho que tem o tempo de uma canção, o da ida e vinda ao e do supermercado.
Sonhei com piano de porco grelhado. Sonhei, portanto e também, com enjoos.
Em tempos aborreci-me de tanto escrutinar o cortinado e não quis brincar mais aos padrões. Até hoje. Já na vez anterior tinha sentido um toquezinho, afinal manter-me ocupada com minudências é a minha distração favorita. Então, vá.
Com a sala na penumbra ficou difícil escrutinar o cortinado mas pus-me a olhá-lo na esperança de lhe inventar novidades. Num repente notei que não descortinava o pássaro desenhado a escuro, precisamente por o espaço estar na penumbra. Mas pus a mente num espaço diferente, que é o mesmo que dizer que esqueci o 'não consigo' e fui buscar o 'eu sei que estás aí e que te vou encontrar'. É desta fé que preciso para me equilibrar. Era, quero eu dizer. Não me sinto nada equilibrada, 'migos. Nada. E sim, encontrei o pássaro escurecido no padrão do cortinado mais famoso do meu blogue.
Era uma espécie de dia de descanso, pois que não seria preciso ir a correr de casa dos bichos-gato para o consultório do senhor doutor. Podia este post ter a etiqueta 'senhor doutor'? Podia, mas, soubesse eu que esta questão me ia dar tanto que falar, e tê-la-ia criado com prazer logo ao início. Se podia criá-la hoje e agora? Podia, mas ia dar-me um trabalhão ir lá atrás na vida do blogue, procurando todos os posts onde apontei 'senhor doutor', isto se quisesse dar alguma coerência à estrutura do meu blogue, pois claro. E normalmente quero, é por isso que vou marimbar para o 'senhor doutor', contudo e todavia, jamais marimbarei para o senhor doutor.
Sempre que me ponho a escrever e a escrever, conseguindo assim um post enorme, tendo a alcançar um certo estado de pureza. Para já, porque escrever muito me faz muito escrever e o texto cresce e cresce, para depois, um post comprido aborrece a maioria das pessoas e assim dificilmente alguém chega ao fim ou quase ao fim, o que faz com que sinta coragem de expor coisas que num post pequeno não exporia. Escrever algumas coisas (obviamente falo das que habitualmente não escrevo) ser-me-ia benéfico, desabafaria, o que me aliviaria, ademais: a sensação que tenho de que poderia ser ouvida é animadora, e não é pouco.
Que nunca se acabe a tinta da tua BIC [gosto de textos longos. de ler, entenda-se. os teus fluem bem, muito bem. muito bom, Gina! :)]
ResponderEliminarBjos
Obrigada, Té :)
EliminarBeijos