Conheço o mercado há décadas e desde sempre lhe notei o piso instável em alguns pontos, bastante esconço até, tanto que no verão é escorregadio que se farta por ação do sol na calçada, sei lá, faz assim como que uma sudação, o que traz humidade e vai daí escorrega e blás. Bom, isto tudo é para dizer que percorro uma meia-lua do passeio que rodeia o mercado uma ou duas vezes por dia. Por ali assim há umas floristas que deitam para a rua as suas propostas de embelezamento de espaços, como por exemplo lindos vasos, lindas flores, lindas folhas, lindos adornos, portanto tudo lindo e muito lindo. Ora eu escolho o melhor caminho, não é. É. Tantos anos e não ter ainda aprendido o melhor trilho e tê-lo já fixado de modo a que o percorra instintivamente seria uma patetice de tamanhão, não é. É. Acontece que a florista colocou um vaso com um cato vistoso junto à sua porta para propor negócio aos transeuntes, mas também o apoiou numa espécie de degrau que o passeio faz, só por dizer que não ocupa a espécie de degrau todo e vai que essa espécie de degrau é usado por mim para escapar ao declive perigoso onde, como já disse, todos os dias ponho os sapatos. Para escapar ao perigo passei então rentinho, tão rentinho ao cato, oh céus, mas não lhe toquei, nem eu queria tal coisa. Ouvi um voz vinda de dentro, tipo desabafo mas tão indignada que chegava à raiva:
Passam sempre em cima do cato!
Não fiz grande caso e segui. Habitualmente mexo-me bem, particularmente se está frio, e por estes dias tem estado, portanto os meus passos são rápidos e precisos, e vai que a minha ideia não era de todo tocar no cato da senhora, qual quê, deve doer, tem montes de picos, e são grossos. Ná.
Não fazer grande caso, não fiz, e seguir, segui, mas ao depois de dados quatro ou cinco passos é que o desabafo da senhora começou a impactar dentro da minha cabeça, tão forte era o impacto que encabecei, a cabeça encabeça, claro, uma ideia espectacular por conter um tudo-nada de vingativa: daria a volta completa ao mercado, voltando a passar no mesmo lugar, com a mesma velocidade e à mesma distância do vistoso cato. E vai que empreendi a ideia, tornando-a real. Eu fervilhava cá por dentro, sério, bolhinhas estalavam-se me nas pontas dos dedos, o coração batia ao pé da boca, rápido que eu sei lá, enquanto pensava:
Caraças pá, olha a puta da velha, hem! Então mas não posso andar por onde quero? Mas que merda vem a ser esta?!
Bom, meia volta ao mercado estava dada. Chegada aí intentei desistir da maravilha que se dá quando coisas como a indignação e a raiva atravessam a minha vida, sim eu tenho uma vida e uso sentimentos, sou portanto atravessada pela raiva de quando em vez, e, ao invés de desbaratar com a senhora, tipo...
… Eh pá, desculpe lá, eu toquei no seu cato? Diga lá, toquei?! A rua é livre, porra!
Pois que não, nada disso. Continuei a rodear o mercado disposta a passar no mesmo sítio, destemidamente, se bem que apreensiva, mas cheia de certezas advindas duma parte de mim que é arrojada, vingativa, trocista. Ah ah. E passei rente, rentinho, rentinho, enquanto a puta da velha me fitava, perplexa, na cabeça dela devia haver gritos:
Ai que ela me parte o cato! Ai que ela me parte o cato!
Ah ah. E eu? Eu sem desviar o olhar do dela, desafiadora, sério, assim mesmo, desafiadora, mas inocente, claro, no fim das contas nada de mal estava a fazer, apenas passei, uma vez mais, rentinho, rentinho. Que mal é que tem, não é. É. Ah, já agora, é que eu cá vou ser velha mais daqui a bocado, mas puta já sei sê-lo há qu' anos.
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