Loures, 18 de janeiro de 2020
Com o lugar da musa vou fazer diferente. Não que o tema me aborreça e, vamos lá a ver, eu até gosto de escrever e mais não sei o quê, mas é que, ao pesquisar a primeira vez deste lugar da musa, encontrei descrições do quanto e do quê e de como é que se tornou para mim o dito lugar, e achando que está lá tudo, vou aproveitar-me de mim. Despudoradamente. Ai. No primeiro texto descrevo, não só o lugar da musa, como as circunstâncias e os arredores habituais dessa altura. O segundo texto contém uma descrição mais racional e também factual, foco os pontos importantes sem romancear. Quero dizer, lá que romanceio, romanceio, mas poucochinho.
É hora de fechar, anda. Vais almoçar e almoçar é preciso. Vais andar e andar é preciso. Comes dois rissóis de camarão e uma dezena de garfadas de arroz de feijão. O segundo rissol vai ser engolido custosamente e vai ficar de sobeja outra dezena de garfadas de arroz no prato. Há algo nesta hora que te tira o apetite, o descanso, a calma. Comes tão rapidamente que no pequeno restaurante és conhecida por 'aquela senhora que come muito depressa e sai logo a correr'. E sais, como se fugisses de qualquer coisa. Eles não sabem que foges de ti, e tu, tu sabes que essa separação é impossível de alcançar, mas persistes na ideia de segunda a sexta.
E vais avenida afora. Com pressa. Vai estar a chover. Porém, a tua pressa não se deve à chuva. Tu sabes disso, eles não. Ninguém te acredita, bem que te esforças: 'ah, eu não gosto é do frio, tanto se me dá que chova ou então não'. Ninguém te acredita, portanto ninguém te merece. Falas menos, falas cada vez menos, as tuas verdades são inglórias.
Introduzes-te numa sapataria, queres ver sapatos e botas porque precisas de sapatos ou de botas. Se não precisasses de sapatos ou de botas era provável que mesmo assim te introduzisses ali. Há modelos fixes, talvez regresses amanhã.
Avanças, detendo-te em todas as montras de sapatos e botas. Há modelos fixes, talvez entres amanhã.
Agora que estás a escrever estes bocadinhos de vida percebes que neste ponto já tens a cabeça repousada, estás inclusive descontraída. Mas andas depressa. É preciso parar no semáforo, esperar que mude para verde, do outro lado vais beber um café. Chamas o 'lugar da musa' ao lugar onde bebes o café e escreves amiúde no teu blogue que ali se encontra o melhor café de Lisboa. Veemência, sim, ao menos no blogue. As verdades não são inglórias quando registadas no blogue, há algo que certifica a veracidade de um facto, se exposto num texto.
Quando te servem o café pegas no pires e encaminhas-te para uma mesa vazia. Na mesa pousas o pires. Numa cadeira pousas o chapéu-de-chuva e a mala. Sentas-te. Abres o pacote do pauzinho de canela e mergulha-lo no sublime café. Abres o pacote da bolachinha e trinca-la com prazer. Vais sentir uma dor fininha nas bochechas, isso acontece porque salivas devido ao doce que a bolacha tem. O primeiro golo de café não ameniza essa pequena dor, os seguintes aniquilam-na. O peito aquece, o estômago idem, a cabeça eleva-se.
Vais pôr-te a ler. Vais estar desatenta à leitura, é aliás teu costume. Lá porque a cabeça se te elevou não quer dizer que estejas concentrada na leitura. Se ler sem tino fosse uma imagem de marca, se fosse notória a permanente desatenção e o desalinho em que vives, estarias marcada pelos demais. Assim... não estás, pronto, não se percebe.
Vai haver um senhor que te sussurra, quer a cadeira que está junto à tua mesa, faz-lhe falta, é um dos que pertence a uma roda imensa de amigos que vão ali beber a bica e conversar animadamente. Vais invejá-los. Vais julgá-los. Vais admirá-los. Vais temê-los. Vais esquecê-los. O sussurro comove-te, é óbvio que este senhor se sente incomodado por te interromper a leitura. Tão raro, o respeito pela leitura doutrem.
Agora vais à loja das roupas ver se aquelas camisolas ainda estão no mesmo lugar. E estão. Alegras-te imensamente, quase se te rebenta o coração. Experimentas todo um rol de camisolas. Cores e feitios vários mas todas lindas. Escolhes uma, a mais conveniente, não a mais linda, e compra-la. Vais sair dali. Andar. Caminhar. Enlouquecer. Por causa da chuva e do chapéu-de-chuva mal avistas a árvore amarela. Olha-la apenas de soslaio e vês num repente que não está assim tão diferente desde a semana passada. Avanças. Desces a rua, esqueces por completo a mola dependurada. Ah, essa questiúncula... Tão rentável em número de posts no blogue. Tampouco lembras as plantas que espreitam à janela de uma casa onde mora gente que nunca viste. Ah, essa questiúncula e blás.
Percorres a praça. Não vês horas nem graus no placar. Nesse momento tens a cabeça cheia com o teu escrever incessante. Que não te serve para porra nenhuma que preste.
Agora que escreves, passados estes dias, percebes que as memórias se esfumam com o tempo, já não lembras do resto do percurso. Poderias todavia basear-te nos pensamentos de todos os dias, não há realmente uma grande diferença entre eles. Mas não. É melhor não registar mais nada.
|22 outubro 2014|
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Comecei por entrar no lugar da musa há anos, creio que vai para aí numa dezena, não sei lá muito bem, e isso na verdade pouco importa. Eu entrava e vasculhava os livros, como hoje, desejando tê-los todos para poder ler a maior parte, mas sem comprar nenhum, como hoje. Mas não bebia café. Pois. E creio que no início das minhas visitas quase diárias não existia no espaço o sublime café. Se existia, peço perdão.
Depois apareceu dentro da livraria e na minha vida o balcão, a máquina de café, os/as moços/as que o serviam na pequena chávena o aromático e fumegante e precioso e escuro e espumoso líquido, o qual não demorou nada de tempo a que o considerasse muito bom e o adjetivasse de sublime. Entrava-se no espaço e cheirava a café à mistura com o cheiro da tinta da impressão e o do papel, o que me inebriava, como hoje. Sentava-me, bebericava o café... E sem dar por isso comecei a sacar do bloquinho – que sempre foi – rudimentar para apontar os meus tópicos, um tanto ou quanto desenfreadamente em alguns dias e calmamente em outros. Recordo que nesse tempo grande parte das pipocas que preenchem o meu blogue saltavam ali, porque havia livros, pessoas e o algo que pairava no ar me inspirava sobremodo. Houve inclusive uma época em que só me inspirava ali. Quando me apercebi disso, quiçá meses depois, cognominei todo aquele conjunto de situações como 'lugar da musa'. E lugar da musa ficou desde então. Existem dezenas (ou centenas, sei lá) de posts onde refiro este lugar e existem outros tantos daí advindos mas sem que faça referência escrita ao lugar.
Tempos depois, calhando anos, achei que não tinha nada de me cingir àquele lugar da musa para me inspirar, qual quê, a musa tem de descer seja lá onde for... Hoje é-me mais fácil encontrar inspiração em todo e qualquer lugar, por causa de toda e qualquer pessoa, ou de toda e qualquer árvore, folha, flor, pássaro, nuvem... Tudo. Não posso todavia passar a vida a escrever. Pois.
|27 novembro 2014|
Est post é continuação daqui.
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